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27 de jul. de 2017

SEGREDO (continuação)

Passaram-se treze anos...

Me chamo Ivan, tenho vinte e dois anos incompletos, e faço parte de uma equipe que produz audio-visual para o curso de antropologia da PUC.

Meio por acaso soube da existência de uma indígena, no arquipélago da Terra do Fogo, última descendente dos Selk´nam, que eram bem numerosos no Sec XVIII. Viajei de carona mais de três mil quilômetros até Ushuaia, com um fotógrafo da equipe, à procura de Ângela Loij, que já passava dos oitenta, e logo sua raça seria extinta tal como tantos animais que sabemos não existir mais.

Fomos por conta própria, como pudemos, pensando em fazer uma matéria, algo inusitado, e ganhar com isso algum dinheiro também. Foi um misto de seriedade com aventura. Passamos muito frio, e na volta quando chegamos em Buenos Ayres, sem um centavo, tivemos que vender a câmera para comprar uma passagem de ônibus para casa.

Deu certo encontrar a índia, não em Ushuaia, mas em Rio Grande. Deu certo escrever sobre ela, seus relatos, muitas fotos, mas não deu certo vender essa matéria como imaginamos. Pouco tempo depois ela morre, e uma síntese do que escrevi foi publicada no Jornal da Tarde. Essa é a história que muitos conhecem, e que não tem nada demais, igualzinha a de tantos que se aventuram por isso ou aquilo.

Mas houve outra história.

Depois que atravessamos o Estreito de Magalhães, já quase noite, dormimos num albergue, e apesar de exausto não consegui pegar no sono até o amanhecer. Levantei com a roupa que dormi, inclusive com a bota, abri a porta de madeira tosca – na minha frente, balançando o rabo, o Fred.

Quem é o Fred? Alguém sabia dele além de mim? E se soubesse, logo diria: Para com isso, cara! É um cão parecido. Mas eu conhecia todas suas manchas, ele tinha um incisivo inferior lascado em forma de trapézio e mancava de uma pata, depois... cada cão tem um olhar. Não sou religioso, nem místico, e nunca acreditei em coisas do outro mundo, mas quando meu amigo acordou e viu o Fred no pé da cama, me perguntou, de onde veio este? Me deu vontade de chorar, o que ia dizer?

Passamos duas semanas viajando de carona nos caminhões, o Fred junto, nenhum caminhoneiro se importou, perguntavam se tinha vindo com ele desde casa, que aquele não era um cão foguino. Dividíamos a comida, ele sempre quietinho, não era do tipo que lambia ou pulava nas pessoas.

Naquela semana um desastre desabou sobre o Chile, que tinha acabado de sofrer um golpe militar, e o Gal. Augusto Pinochet, que tomou o lugar de Allende, fechou as fronteiras, e ficou impossível sair da Terra do Fogo pelo Estreito de Magalhães em Puert Aymont.

Por cortesia conseguimos embarcar num aviãozinho do Correio Aéreo Argentino, de Rio Grande até Rio Gallegos, na província de Santa Cruz. O Fred não pôde ir.

Ventava muito no aeroporto, ele ali sentado na pista me vendo subir na aeronave, imóvel o tempo que pude vê-lo pela janelinha. Baixou uma tristeza, algo que não se descreve, e fiquei pensando: que nome se dá a este tipo de despedida?

Meu amigo tirou muitas fotos de Ângela, mas nenhuma do Fred, nem eu pedi, mas com ele sempre ali do lado, quando revelamos os filmes fiquei na espectativa que ele aparecesse em algum cantinho, mas em nenhuma ele estava.

26 de jul. de 2017

SEGREDO

Não estou escrevendo pra ninguém, me deu vontade de guardar como eu sou, mas que vai ser como eu era  quando crescer, e só vou ler isso quando tiver vinte ou trinta anos. Mamãe é a Zelda, meu pai se chama João, Fred é meu cachorro, e nós moramos numa casinha de vila bem pequena. Tenho tanta coisa que queria que fosse diferente, que é difícil até começar. Ver por dentro a igreja da praça é uma das coisas que mais quero, mas está sempre fechada, e não me levam lá de jeito nenhum, mesmo meu pai sendo amigo do padre, que eu não gosto nem um pouco,  porque chuta os cachorros que dormem na porta da sua igreja. Toda noite esse  padre tá no bar do Seu Agenor jogando bilhar com meu pai, e mamãe tem de buscá-lo ou ele só vem quando fecha o bar, e às vezes nem vem, mas ela não chega até a porta, de longe faz um sinal com o dedo e logo ele atende. Não sei direito o que é esse jogo de bilhar, que minha mãe detesta, e que faz meu pai falar tão atrapalhado, que às vezes não compreendo nada, mas deve ser bom, porque no caminho ele ri o tempo todo. Em casa ele vai direto pro banheiro e demora um tempão, mas banho mesmo quase nunca toma, e não sei porque eu tenho que tomar todo dia e ele não, não acho isso justo, mas é assim. Nem meu pai, nem minha mãe me explicam porque o padre precisa de uma casa tão grande morando sozinho, isso também é outra coisa que não acho certo, mas é assim, já tenho nove anos e ninguém me explica nada. Por sorte tenho um cão que me entende, o Fred, ele é marrom e branco, e é muito bonzinho. Toda noite antes de dormir eu brinco com ele, que nem reclama quando estou cansado e esqueço de pôr água. É de todos o meu melhor amigo, só que ele não é bem um cão de verdade, eu inventei ele no pensamento, mas é quase de verdade, e ninguém pode chutá-lo ou fazer alguma maldade. Quando eu crescer ele já vai estar bem velhinho, mas nunca vai morrer. Acho que já passei da idade de fazer a primeira comunhão, mas se um dia fizer não vou confessar isso pro padre, que sei que vai pedir pra me livrar do Fred, tanto que detesta cachorro. Não sei pra que existe padre, mas já não gosto de nenhum. Um dia perguntei à minha professora se ela tinha um cão, disse que tinha um que morreu e não queria mais não, que fazia muita sujeira e bagunça, mas se ela conhecesse o Fred não ia falar assim. Se pudesse, queria ter um cão de verdade, desses que a gente passa a mão, mas meu pai é igual ao padre, também detesta eles, e se eu tivesse não ia poder brincar com o Fred, mas não faz mal, tá bom assim, em casa não tem nem quintal, quando eu crescer vai ser diferente. Apesar do meu pai ser muito esquisito, gosto dele, e da minha mãe tenho muita pena de tanto que trabalha. Nunca apanhei, o que é assim é assim, estou no terceiro ano, sou bom aluno, este mês ganhei o concurso de redação da escola, mas não falei nada do Fred, que é segredo. Amanhã continuo. 

UM POUQUINHO DE CADA TEMPO


NÃO IMPORTA QUE NINGUÉM LEIA, EU NÃO ME CHAMO MARTA.

Não sei porque às vezes ele me chama de Marta, mas não me chamo Marta, já disse mil vezes. Sei que acertar com marido deve ser loteria, mas igual ao meu acho que não tem nenhum, e sou muito idiota mesmo de não ter percebido desde o início, se bem que não era tanto, virou fetiche, sei lá, essa pegação com a matemática. Agora deu pra falar desde o café, que o plano é feito por três pontos, ou uma reta e um ponto, e me pergunta se compreendo. Plano pra mim sempre foi uma ideia pra se executar, mas ele quer me enfiar na cabeça de qualquer jeito os princípios básicos que norteiam sua vida, e se já odiava matemática muito antes dele, imagine agora com um marido que calcula os watts quando toma banho, se pega uma camisa fala quanto custou três minutos de passar a ferro, faz simulação até das emoções. E quando diz que os números são a chave do universo, que o homem não tinha pisado na lua sem a matemática, eu penso, que fosse ele da ONU se não ia propor que todos humanos fossem numerados, nome pra quê, diria, tem pronúncia complicada nos diferentes idiomas, tem homônimos que só trazem confusão, o sujeito chamado de ‘um trilhão, duzentos e dez milhões, treze mil, duzentos e nove’, seria único, inconfundível, podia ser mongol, panamenho, basco... era só digitar o número e o google diria onde e quando nasceu, onde estudou etc., agora, se eu pensasse em retrucar, e dissesse, cê acha que dá pra chamar sua mãe de ‘dois trilhões e o escambau’, certamente ele faria aquela cara de quem acha que sou burra demais, e diria, claro que não, em casa pode-se continuar com nomes, números são para documentos, certidões, pras coisas públicas... Dá não, suas múmias fenícias, gregas! Seja lá quem inventou os números e a matemática nunca imaginaria existir um assim, acho que se desencarnassem e ficassem meia hora com ele iam rapidinho 'desinventar' tudo. Até quando tá de porre ele olha pra garrafa e fala quantos ‘moles’ tem no percentual de álcool. Seus sonhos então devem ser abarrotados de máquinas de calcular, computadores, registradoras, e não deve faltar uma lousa enorme toda rabiscada de giz, cheia de equações, matrizes, diferenciais, e números imaginários à enésima potência... Precisava de um psicólogo, mas acha que sou eu quem devia ir, e agora ainda começou a falar que vai fazer do coitado do menino uma cópia melhorada dele, que o destino faça do meu filho um carroceiro se for pra escapar dessa armadilha, prefiro. Sou muito covarde, mas tô pensando em fugir, sumir dessa vida com o garoto, pesquisei nos mapas um lugar, que ele podia morrer de fazer cálculos e nunca me encontraria, mas é longe e caro, e só de saber que preciso guardar dinheiros, fazer contas, tenho taquicardia e passo mal. Mamãe não sabe de nada quando diz que ele é um bom homem, que deus me perdoe se fico orando quando ele dorme pra sua cabeça ter um curto-circuito, só espreitando na escuridão se aparece uma fumacinha qualquer e saber que acabou.

Uma tal Ulla

Uma tal Ulla.
Há sempre quem leve comida e água para essa gente das catacumbas. Por dó, piedade, para apaziguar um sentimento de culpa, ou mesmo sem saber o motivo... não muito diferente dos que alimentam cães de rua.
Fora dos padrões da normalidade, quem decidiu viver lá certamente teve seus motivos, mas nem todos foram miseráveis: há artistas que tiveram momentos de glória, bancários, intelectuais, e só não são completamente invisíveis ao Estado porque morrem e tem que ser retirados dali.O caso de Ulla chamou a atenção, quando uma notícia da TV mostrou que um ucraniano, que viveu na França, deixou sua fortuna para a tia de destino ignorado, Ulla Spassy, única irmã do seu pai, caso respondesse com uma só palavra a determinada pergunta do testamento.
Um jornalista da Corriere della Sera conhecia alguns moradores das catacumbas, e lembrava de ter ouvido falar de uma tal Ulla, não foi difícil encontrá-la. Mas não conseguiu saber seu sobrenome, se era ucraniana, nem como chegou ali. Atenta, de fala precisa, e manejando com sabedoria o idioma italiano, recusou- se falar do passado e ser fotografada.
O que seus vizinhos de toca lhe contaram é que era mesmo ucraniana, que perdeu o filho e a mãe, e foi trazida de Kiev por um grupo de sobreviventes de Chernobill. Também disseram que foi do serviço secreto da Ucrânia, mas nada ali é muito confiável - delirantes, a maioria sofre de alguma demência. No escuro e convivendo há anos com ratos e seu primos voadores dificilmente seria diferente.
O jornalista voltou lá várias vezes, cada vez mais impressionado com a idosa, que devorava jornais que chegavam até ela, e falava com muito conhecimento sobre a política italiana e as relações internacionais. Apesar da sempre quase escuridão onde estavam, e dos seus setenta e poucos anos, em nenhum momento lhe pareceu que ela tivesse alguma confusão mental, muito menos a aparência de quem sofreu os efeitos da radioatividade.
Mas quando citou o testamento e pronunciou o sobrenome Spassy, de atenta e interessante que era, aquietou-se desinteressada, logo falando de outras coisas. Nesse momento algo lhe assoprou que devia ser mesmo Ulla Spassy, a bilionária paupérrima.
E foi a última vez que se viram, ela se aprofundou nas grutas e não mais a encontrou.
Tempos depois, no final de um artigo sobre a máfia do lixo químico, o jornalista escreve umas poucas palavras completamente desalinhadas do texto, que certamente nenhum leitor atento entendeu ...
“Se existe a palavra precisa e ordenada, existe vida sã ao lado dos ratos nos subterrâneos fedorentos das catacumbas romanas. Mas que estranha energia povoa a solidão, que faz ser possível preferir o isolamento e a escuridão? Que espécie de feitiçaria se apodera de alguém, que se mantém atento ao mundo, completamente fora do mundo?”


20 de fev. de 2017

E A NÓS, A LIBERDADE!


“E a nós, a Liberdade!” René Clair, 1931. Não vi isso ontem, mas há trinta e poucos anos, e não muda nada. Só dasvez eu escrevo, e não vou falar sobre o filme, apenas que as imagens quase sem textos mostram que a função do cinema não é só espetáculo.

Tanto no grego, como no latim, a palavra liberdade nasceu associada ao movimento livre do corpo ou do pescoço sem os grilhões dos escravos, ou para diferenciar um povo livre do escravizado.

Na atualidade e num sentido mais abrangente, a palavra liberdade só não é uma mentira completa,  porque os gregos também inventaram a palavra utopia, que significa um não-lugar, ou seja, algo inexistente, que se completam como numa simbiose.


Completam-se porque liberdade é a utopia de quem está numa prisão, ou se sente numa jaula num trabalho que aflige, numa cidade que detesta, num país escravizado, numa família que sufoca, numa dor canalha; ou ainda, num corpo danado com mais perguntas que respostas, que entre o desejo e o sentido real da liberdade há uma montanha intransponível, e não se pode escalar um conceito, uma invenção semântica.


Quem se propõem metas e as busca com afinco e dedicação, ainda que se as atinja na plenitude, o máximo que pode dar a si é o prazer do dever cumprido, só um inútil elogio ao ego, que necessita exatamente do oposto para uma centelha da verdadeira liberdade - a ideia da felicidade plena desse não-lugar onde existe amor ao próximo, misericórdia, justiça, respeito, e tudo funciona.


Se cada qual tem seu desígnio não há como mensurar as diferenças nos quase infinitos caminhos do desejo, mas o sentimento de liberdade é factível quando o incerto dá lugar ao certo e o risco sobrepuja o que é seguro na quase impossível vida sem roteiros.


Alguns provam desse estado da alma: aqueles cuja vida é muito simples, com pouco ou nenhum contato com  a teia tecnológica e a globalidade, que rejeitam as ofensas sem esforço e fazem das intrigas como o canto das aves, que não se gravam, e, que vez por outra se embebedam, desafinam o canto, falam a língua dos seus animais, e brincam com a consciência se afastando delas por momentos.

De outras formas, fora da loucura,  respirar  as moléculas da liberdade do alto da montanha,  só se despregando das raízes num voo sem plano – o desapego total do confortável ‘desconforto’ do casulo.



13 de fev. de 2017

A VERDADE NÃO IMPORTA...

“Não adianta, amiga, você acha que eles vão tomar alguma providência? Esses delegados são todos machistas, não vão dar a mínima pra você...”

Na delegacia:

-- É isso mesmo Sr. delegado, o menino tem uns dez anos e fica com o carro do pai andando na minha rua. Isso além de proibido é um crime, não acha?
-- Sem dúvida, minha Senhora, me dê o endereço, que vou mandar averiguar.
-- A rua onde moro?
-- Sim, não é lá que o garoto dirige?
-- É, como disse, mas o endereço não posso dizer.
-- A Sra, veio até a delegacia fazer uma denúncia, mas como podemos averiguar se não sabemos onde fica?
-- O pai dele dizem que é do tráfico, se disser, eu sei como é isso, vai acabar sabendo e vou ter problemas.
-- Não se preocupe, só eu vou ficar sabendo.
-- Ah é... muito bom então, é o Senhor mesmo que vai lá sozinho averiguar?
-- Claro que não, minha Senhora, sou delegado, vou mandar uma viatura.
-- E quem vai estar nessa viatura?
-- Provavemente dois policiais do turno.
-- O Senhor confia 100% neles?
-- Sim, claro, dentro do possível.
-- Tá vendo só, “dentro do possível”. Mas tenho uma ideia... estou vendo pela aliança que é casado, desculpe a curiosidade, mas o Senhor tem uma amante?
-- Amante? Pra que quer saber isso?
-- Por nada. Tem?
-- Não.
-- Não mesmo? Nunca bebeu com os amigos e saiu com uma garota assim-assim...?
-- Olha minha Senhora, não lhe conheço, não sei o que isso tem a ver com sua denúncia, tem gente aí na fila com casos gravíssimos, que tenho de atender...
--  Mas também não lhe conheço, e não vou contar a ninguém, diga...
-- Se disser me dá o endereço?
-- Sim, claro.
-- Ok, saí uma vez, agora escreva aqui o seu nome, RG e o endereço.
-- Pode me dar outro papel igual a esse?
-- Pronto, aqui está o papel. Agora escreva.
-- Obrigada, Sr. delegado, enquanto preencho neste, o Senhor só escreve seu nome e seu endereço neste outro.
-- Quer isso pra quê?
-- Por nada, meu jeito, meu pai era assim também, puxei dele. Se tenho que confiar no Senhor, que nem conheço, tem de confiar em mim também.
-- Pronto, aqui está o que me pediu, Senhora.
-- E aqui o meu, Sr. delegado.
-- É onde mora, certo?
-- É a minha rua, sim, mas o número é da casa do menino, acho que é mais importante, não?
-- Claro, deixa eu ver onde é isso... Ah sim, aqui perto. A que horas o tal menino costuma pegar o carro.
-- Varia, às vezes de manhã; às vezes depois do almoço. À noite nunca vi.
-- Está bem, amanhã mesmo mando uma viatura lá.
-- Muito obrigado, Sr. delegado.

No dia seguinte não vai nenhuma viatura, nem no outro dia. No terceiro dia o Delegado atende o telefone:
-- Pois não, quem..?
-- Sou aquela Senhora que esteve aí uns dias atrás fazendo a denúncia do menino que dirige na minha rua... Está lembrado?
-- Claro, como ia esquecer...
-- Que bom, não esqueceu de mim, mas esqueceu de mandar a viatura, né. Fiquei aqui de prontidão, não apareceu ninguém, bem que minha amiga disse.
-- Disse o quê?
-- Que isso era coisa pouca, que nem iam tomar conhecimento.
-- Diga a ela que está enganada, que só ainda não foi possível porque temos muito trabalho e pouca gente, mas vou mandar sim, fique tranquila.
-- Ele vai acabar atropelando alguém...
-- Imagino que sim, já está na lista das prioridades, Senhora.
-- Tenho seu endereço, viu..!
-- Que quer dizer com isso, está me ameaçando do quê?
-- Ah não, como ia ameaçar um delegado, não lembra da minha idade, acha que ando armada?
-- Desculpe, Senhora, acho que a interpretei mal.
-- Foi sim, só gravei nossa conversa, coisa que meu falecido pai também fazia... e só vou sossegar quando esse menino parar de circular com o carro do pai, tem que prender o irresponsável, um pai não pode fazer isso com uma criança.
-- Alô, alô... puta que o pariu!

-- Um dia depois:

“Falei que ia dar certo, amiga, a gente tem que ter fé. O doutor foi muito atencioso comigo, e você nem imagina quantas viaturas tinha aqui ontem. Foi uma fuzarca e acabaram prendendo o sujeito do 113, logo a imobiliária vai pôr a casa novamente pra alugar e vamos ser vizinhas. O que aconteceu com o menino? Que menino?...”

12 de fev. de 2017

Loucos e Santos

Loucos e Santos

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que “normalidade” é uma ilusão imbecil e estéril.
Oscar Wilde

31 de dez. de 2016

O GRANDE MANICÔMIO


Pistas exclusivas para bikes, mega festas comemorativas para multidões, ideias públicas para pôr um tempero na vida insossa das grandes cidades.

Como tudo é só provisório, no dia-a-dia a cidade fede a esgoto e tetra etila de chumbo, e os pequenos parques esmagados pelas edificações servem aos celulares e a parafernália eletrônica, que se comunica sem se comunicar, para o passeio com seus amos.

Quantos não chegam do trabalho exaustos e caem nos assentos em frente a TV, por falta de energia ou por não se disporem arriscar a vida numa simples caminhada em seus quarteirões. As grandes cidades engolem o homem porque não é ele a verdadeira razão do Estado, e não será urbanista, psicólogo, polícia ou político, que ajudará a mudar.

O coração das metrópoles está doente, a periferias se espalham como tinta derramada sobre o mapa, e nenhuma Lei que tenta organizar esse caos se sobrepõe ao que é regido pelo poder econômico. 

Seria mais humano abrir mais clareiras no concreto, onde há espaços cercados à espera de valorização, que o Estado poderia transformar em algo útil à maioria. Poderia, mas não sem as eternas discussões sobre as prioridades do orçamento público, que ao Estado endividado a utopia da transformação não vai nunca além do básico. E o tal espaço interessante morre antes de nascer, ninguém viu começar e já temos mais um conjunto de edifícios, um shopping center.

O planejamento público está sempre atrasado nas soluções dos mega-problemas, corrida perdida se os rumos do desenvolvimento não forem mudados. Isso é válido para todos os cantos, agravado com a pobreza. E o grande canteiro de obras que são as metrópoles é mais que a geração de empregos ou solução verdadeira para o homem, é uma fábrica de problemas - o medo associado à crescente violência, a insatisfação geral com o caos na movimentação urbana, e tudo aquilo que qualquer um de nós sabe enumerar, fere a cidadania.

E machuca tanto, que à 'maioria da minoria' o problema, a verdadeira razão de todo o mal está na péssima educação pública, ou nos políticos . Políticos são mesmo culpados, e educação de qualidade pra todos não existe. Ninguém está errado, mas o que mais pesa nessa balança é a falta de caráter dos que não estão nem aí com nada, que conscientemente ou não, usam o sufrágio para eleger o que há de mais pernicioso ao país, sempre à mercê do poder econômico, e o sistema tem uma doença sistêmica, uma chaga que não vem do mosquito!

Eu não gosto dessa doença que lesa a pátria, e tampouco sei lidar com esse mosquito que não é um mosquito! Então dispenso a realidade insana, e sonho com um outro tempo, sem cenários com arco-íris ou gente sorrindo sem motivo, sem religião, partidos políticos, mas com o remédio simples para extinguir o que não vai bem - espontaneamente e sem lideranças, de cada cidade, de toda cidade, empresários, pensadores, professores, governantes, os que plantam e colhem com as mãos, os que varrem as ruas, todos reunidos numa mesa deca métrica, diante de uma única questão, iniciada por "Nós herdamos essa merda e somos responsáveis por isso...".



18 de nov. de 2016

O QUE FOI QUE ELE DISSE?


Perplexa, atônita,  me calei. Essas coisas não são de dizer. Nem de pensar. Mas há quem se atreve buscar a palavra que machuca, e se sente bem fazendo isso, doente que é.
Ele falou, riu e se mandou.
Duas da manhã, o bar vazio me esperando para fechar. Errei três vezes a senha do Cartão. - Amanhã passo aqui e pago, me desculpem.
“Há 30 anos Nixon previu que Trump seria o presidente americano”. O que eu tenho com isso, só quero minha cama. Ia chamar um Uber, mas meu cartão foi bloqueado. Tudo bem, antigamente não tinha nada disso, posso tomar um táxi normal, acho que meu dinheiro dá.
Onde tem táxi? Sumiram. E como venta aqui... Não sei como não me acostumo, já desconfiava que era um canalha, não é só isso que me aparece? Tenho imã pra cretino, mas é a última vez que me pegam. E como faz frio nessa cidade, que ideia vir com esse vestidinho de linho. Ia imaginar que ficaria a pé? Dessa vez não vou ficar gripada, dessa vez não, acabei de sair de uma, ele me paga! Não, ele nunca paga nada, e não vou vê-lo mais, fim é fim. Nem toda raiva do mundo vai me fazer escrever uma palavra pra ele, silêncio não é perdão, ao contrário.
Ah, um táxi. - Boa noite, senhor, tudo bem? Desculpe, é só uma corridinha à toa. Tá fresquinha a noite, né? Se estou bem? Sim, estou ótima, não parece? E o senhor? Que bom, fico feliz.
- Nossa, deu tudo isso... Pensei que fosse menos, aumentou né, faz tempo que não tomo táxi, me desculpa,  vou buscar, volto num instante.  - Pronto, pode ficar com o troco. Ah não, minha bolsa! obrigada, não sei onde está minha cabeça! O senhor parece tão correto, coisa rara hoje em dia. Nem queria dizer, mas está tão abatido, não quer um cafezinho, faço num minuto?
- Não toma café? E chá? Tudo bem, entendo, depois cafeína em excesso não é bom mesmo, mais uma vez agradeço, e bom trabalho!
Deve ter pensado que era uma cantada ou que sou maluca, tenho que voltar pro prezinho, só não queria esperar o dia raiar rolando na cama e pensando no que o imbecil me disse.
Minha tia Joana dizia que nessas horas uma boa arrumação ajuda. Quem sabe... uma limpa no armário, isso, assim me ocupo e não penso em nada.
Essa blusinha super-decotada, que não uso há anos, lixo.  Nossa, ainda está aqui esse vestido de madrinha do casamento da minha irmã, lixo. Apostilas do Objetivo, lixo. “Acima do Bem e do Mal”, até que gostei deste, mas já li, lixo. Por que ainda não me desfiz dessa calça vermelha que nem entra em mim? Lixo. “Razão de Revolução”, mãe do céu, quanto tempo...  ganhei daquele francês comunista que namorei, até que ele era legal, mas o livro não entendi nadinha, lixo. “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, esse foi presente da maninha quando me divorciei, devia queimá-lo, vai que alguém acha e resolve ler, lixo.
Toca o celular. É o cretino. Não vou atender, e pensando bem... dói o coração, adoro esse vestidinho de linho, mas se voltar a usar sempre vou lembrar do que ele disse, então vai pro lixo também pra não me contaminar nem a ninguém.
Valeu o conselho da minha tia. O tempo voou, a maioria das coisas eram inúteis. O armário ficou meio vazio e eu  também, agora, enquanto ferve uma água para o café vou tomar um banho rápido, que está quase na hora de ir trabalhar. Trabalhar é bom, eu gosto,  mas quando me convidarem pra beber uma cerveja, eu também gosto de cerveja, vou pensar dez vezes antes de aceitar. Tendo caráter não precisa ser bonito, malhado, nem rico, só não pode ser um ignorante total, e se for mudo ia gostar muito, não tenho preconceito.

28 de set. de 2016

Esperanza

Não se encontra na razão toda a explicação do desejo, mas agregado à alma a poeira das estradas, como as estrelas, transformam a maneira de ver o outro.

Era um fim de outono, dez da noite, último dia do ano, a Ruta 3 deserta. O sol enorme e vermelho do poente não permitia focar à distância uma mancha escura, que podia ser uma ave ou um cão.

Depois de uma hora de caminhada - nem era um cão, nem uma ave, mas a traseira de um automóvel preto parado no meio da pista. E aquele não era um solitário carro quebrado, só o último de uma fila de exatos vinte e seis, e todos vazios.

Naquele momento um estranho sibilo metálico se misturava às rajadas de vento, mas no entorno não havia nada, quando toca a campainha de um celular sobre o painel de um dos carros. Hesitei em atender, mas aquilo insistia tanto que acabei pondo o sujeito no ouvido. E alguém ouviu o meu “alô” com um suspiro, e foi só e tudo o que me foi permitido, não entendi nenhuma palavra até o aparelhinho se calar por conta própria.

O céu escureceu de vez. E se a noite nunca atrasa, aquela veio na hora e com chuva torrencial. Não ia mesmo chegar a lugar algum com tanta água, que me acomodei no banco traseiro daquele carro.

Com o barulho dos trovões o estranho ruído desapareceu. Ou, se, exaurido, embarquei rápido para algum lugar num outro mundo, que não percebi nada até abrir os olhos na primeira manhã do ano seguinte.

O céu era todo anil, o sibilo voltou mais forte, e não havia mais nenhum carro além do que eu estava. Pensei em anotar a placa, que chegando ao vilarejo talvez alguém de lá pudesse me explicar o que acontecia, mas o carro não tinha placa. E se no meu mapa dizia que faltavam só alguns quilômetros, certeza que andei muito mais, e o tal ruído só se calou quando cheguei ao único posto de combustível da região, na entrada da pequena comunidade conhecida como Esperanza, que não tinha mais do que trinta habitantes.   

Mas não havia ninguém no posto, nem na hospedaria.

A estalagem tinha as portas escancaradas. Bati palmas, assobiei, cansei de chamar por alguém. Esperanza fora abandonada. Sobre o balcão do refeitório, uma cesta com pão amanhecido e um café frio numa garrafa térmica. Peguei emprestado um pão e sentei junto a uma mesa próximo à janela.

Estendi meu mapa, a próxima vila era muito distante e voltar também não era pouco. Absorto, olhando a ventania de areia pela vidraça, como uma pipa sem rumo num vento louco um menino ziguezagueava com a mão nos olhos. Larguei tudo na mesa e corri em sua direção. Ele agarrou minhas pernas chorando muito. Abracei-o e entrei com ele na estalagem.  

--- Como se chama? – perguntei.  
--- Juan – disse, soluçando. 

--- Que foi, Juan, que está acontecendo aqui? – passando a mão nos seus cabelos tentando acalmá-lo.
--- Eu moro com minha avó, foi ontem de manhã. Ela viu da janela uns caminhões grandes e uns homens de uniforme, mandou eu ficar quieto, que ia ver o que era aquilo, e não voltou.

--- E seus pais?
--- Não tenho pai, sou cego, minha mãe mora em outra cidade. Ontem, enquanto esperava pela minha avó, ouvi gente gritando e chorando, o barulho alto dos motores dos caminhões, fiquei com medo e me escondi, quando entraram em casa não me acharam.

Juan tinha a pele clara, cabelos quase brancos, olhos azuis como de uma pintura, e talvez uns dez anos, e assim que se acalmou, me perguntou onde estava sua avó e quem eu era.

Não pude lhe responder com a precisão que certamente desejava, mas disse se quisesse encontrar sua avó teria que vir comigo e andar uns três dias (na hora decidi voltar), e perguntei se tinha alguma comida na sua casa.

Quase não tinha nada, peguei algumas poucas coisas, um cobertor, uma garrafa de água, e saímos rápido dali, mas me perguntei como alguém podia morar naquele casebre sem calefação, quando no inverno Esperanza tem temperaturas abaixo dos trinta graus? Em Três Cerros é a única referência humana em centenas de quilômetros, com sua hospedaria aquecida e o posto de combustível.

Apesar de não enxergar Juan tinha algum sentido que desconheço. Me acompanhava sem tropeçar, não reclamava nem fazia perguntas. As que eu lhe fiz não sabia responder, mas lembrou que há algum tempo, desde que surgiu no campo aquele estranho ruído metálico, não se podia mais beber a água que vinha do rio, e que sua avó tinha uma vaca e umas galinhas, que foram ficando magrinhas e acabaram morrendo.

Fiquei pensando no que disse. E se enquanto tinha sol, apesar do vento, ainda fazia algum calor, à noite a temperatura caía a uns três ou quatro graus, O dia se fora, e antes do breu total me afastei da pista, cortei uma touceira de capim e fiz ele deitar e se enrolar no cobertor. Dormiu na hora. Rezei para não chover, só tínha um abrigo de chuva.

Dia seguinte, outra vez sem cruzar com uma única alma, andamos umas dez horas até desaparecer da vista a imagem dos Três Cerros (o acidente geográfico que consta dos mapas ingleses desde o Sec. XVI). Descansamos e comemos um pouco antes de seguir. Se aguentássemos a jornada dormiríamos mais uma noite e chegaríamos a Jaramillo no fim do outro dia.

Anos atrás estivera naquelas paragens, mas desta vez, apesar da sempiterna devastadora solidão do deserto, havia alguma coisa muito errada com aquele lugar, nada ali se movia além do vento.

Acordamos cedo na manhã seguinte e andamos novamente o dia todo, eu estava exausto. Apesar da aparência frágil, ele era selvagem, acostumado a coisas inverossímeis, e não demonstrava cansaço, nem aborrecimento, quando no começo da noite, enfim, chegamos a Jaramillo.

Uma semana sem ver ninguém, a primeira coisa que fiz foi entrar com ele numa lanchonete. Juan parecia feliz em ouvir a voz de pessoas, e enquanto comia me perguntou sobre sua avó. O que podia fazer se não levá-lo a uma delegacia de polícia e relatar tudo o que vi e senti?

--- Esperanza? Esse lugar não existe, nunca existiu! De onde você é? – me perguntou o policial.

Tentei argumentar que conhecia aquele lugar, que já estivera lá num inverno. Ele me disse que estava sonhando, que era melhor pra mim esquecer tudo aquilo e ir embora, que eles já tinham problemas demais na região.

Quando se assegurou que Juan era cego mesmo, disse que o levaria para sua casa aquela noite, que no dia seguinte o encaminharia para uma tal Fundação do Menor, e que iam procurar o paradeiro da sua avó.

Naquela mesma noite consegui uma carona de um funcionário da estatal petrolífera, mas tudo que lhe perguntei ficou no ar, ele não falava nada sobre o assunto. De madrugada cheguei a Rawson, daí o reencontro com a civilização.

Foi a última vez que estive por lá, mas não estava sonhando, aqueles automóveis sumiram enquanto dormia. E como esquecer daquele menino? Tampouco soube o que fizeram com aquelas pessoas.

Pela descrição de Juan - água contaminada, os animais da avó que definharam, a gritaria, homens de uniforme e o barulho dos caminhões, tenho a impressão que foi o exército que retirou às pressas os moradores de Esperanza e isolou aquela área.

Não há verdade que não se duvide, mas exatamente naquelas coordenadas (latitude 48º 07´- longitude 67º 38´), concentra-se o maior buraco de ozônio do planeta. 




4 de set. de 2016

OUTROS DIAS, OUTRAS PESSOAS, OUTROS SORRISOS...

Outros dias, outras pessoas, outros sorrisos...

Acabei de pegar o Renatinho na escola, tá com dor de dente.
-- Abre a boca, filho, mostra onde dói. -- Não.
Sou a mãe dele, tô exausta, meu chefe é um chato de galocha, pensa que sou sua escrava , e acho que sou mesmo.
-- Abre a boca, filho, mostra onde dói! 
Ele chora, berra de boca fechada, pode? Pode. Minha vontade é de chamá-lo de filho da puta, mas não sou de dizer essas coisas e sou sua a mãe.
Ligo pro Renato, o pai dele, meu marido há nem sei quanto tempo. Ocupado, claro, sempre ocupado, não tem tempo pra nada. A secretária pede pra ligar mais tarde. Digo que é urgente, ela volta e diz que ele me retorna em seguida.
O carro anda e para, mas ele não, nem o barulho da rua disfarça, é uma berração em uma nota só.
Meu deus, vou pra casa ou levo ele ao dentista sem consultar o Renato? Liga, Renato, liga, não tô mais aguentando isso. Mas ele não liga. Não sou mesmo de falar palavrão, mas quero que o mundo se foda, não tenho dez reais na carteira e é aqui mesmo que vou entrar.
Lugar meio sujo, nunca entrei num Posto de Saúde da Prefeitura, nunca precisei. A Maria, minha diarista, diz que tem dentista, tá certo que ela tá na fila há meses para arrumar uma ponte, mas o Renatinho não precisa de dentadura, só de uma dura ou um remédio qualquer.
Ai meu pai do céu, por que mereço isso? Ele puxou tudo do pai, não só o nome, mordeu o dedo do doutor igual a um cão raivoso, e ainda tive de ouvir um sermão daqueles.
Depois que enfiei ele no carro, abriu a boca gritando mais ainda. Cadê o Renato, que nunca está onde e quando preciso dele. Manhê, socorro, não dei nenhum trabalho quando era criança, sua imbecil inútil, por que morreu tão cedo? Que adianta, agora nada adianta, tô morta, a cada minuto parece que minha casa se afasta mais com esse trânsito. Quando chegar vou dar um doril pra ele, vamos ver se passa.
-- Filho, diz pra mamãe quando começou essa dor, fala comigo por favor. Buá....e buá.... 
-- Alô? Renato? Arre. O que foi? Seu filho, que não para de chorar. Tá, nosso filho, desculpe. Onde estou? Na rua, no trânsito, com ele berrando de dor de dente, não tá escutando? Como..? Eu sei que ele tem os dentes perfeitos, iguais aos seus, mas tá berrando, com a mão na boca, até parei no Posto de Saúde, mas quem disse que ele abre a boca. -- Claro que o doutor tentou, mas sabe o que ele fez? Quase arrancou o dedo do sujeito, que ainda me deu uma dura daquelas, que não sei criar meu filho, quer dizer nosso filho. – Está rindo? Pera aí, me escuta, tô chegando em casa, pensei em dar um doril pra ele, que acha? Não?  Então o quê? 
Merda, acabou a bateria do celular.
-- Filho, para de chorar, por favor, vai passar logo, mamãe vai te dar um remédio assim que a gente entrar em casa.
Mas assim que abrimos a porta ele parou de chorar. – Ai, num acredito, tava ficando louca. Passou, filhinho? Ele balança a cabeça, que sim. – Diz agora pra mamãe onde doía? Ele levanta a gengiva e mostra um corte. -- Que foi isso? -- Foi o Alfredo, sabe? -- Não, não sei. -- Foi ele, o Alfredo, ele me acertou um soco bem aqui. -- Por que, filho, que você fez? --  Ele me xingou e eu dei uma mordida nele, quando soltei ele me deu um murro. – Mas você mordeu ele...? – Mordi.
– Não acredito, virou índio, é? Quando seu pai chegar nós vamos ter uma conversinha, agora vai fazer suas coisas, que já são sete e meia, não tenho tempo pra nada, tô morta e tenho que fazer o jantar pro seu pai, e eu nem posso pensar em comida.
-- E toma isso, filho, bochecha três vezes. -- Se arde? Arde, arde muito, acho que você vai morrer... 
Só ouvi ele no banheiro bochechando umas dez vezes. Eu sei que mereço. Sou uma idiota incompetente, quase derrubei a frigideira com óleo fervendo só de sentir o Renato entrando e perguntando cadê o filhinho dodói.
– Tá no quarto, era um corte na gengiva, ele mordeu um tal de Alfredo e levou um murro na boca.
– Eu sabia.
– Sabia o quê?
– Que não era dente cariado, nunca tive uma cárie, igual meu pai e meu avô. E o jantar, está pronto?
-- Como pronto, quantas mulheres você tem, não acabei de chegar?
– É que, acho que esqueceu né, hoje é quinta, tenho o joguinho de futebol lá no clube, mas tudo bem, vou ver o Renatinho e me trocar rápido. No caminho me viro e como um sanduba.
-- Filhooooo, filhoooo...

Quando li dia desses o que uma poeta escreveu, que ainda bem que existem outros dias, outras pessoas, outros sorrisos, juro que se ela fosse viva ligaria pra ela e perguntaria o porquê desse ainda bem.