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8 de jan. de 2014

O CÃO E A TARTARUGA


A tartaruga disse ao cãozinho que, se nada desse errado, seu destino era passar dos cem anos.

O cão ficou pasmo, pensativo, e perguntou:

– Mas por que queres viver tanto essa vida morna e sem graça?

De pronto ela respondeu:

– Não sou eu quem decide! Nasceste cão, eu, tartaruga, aquele ali, humano…

“Aquele ali” era eu experimentando uns fones de ouvido com uns chips chineses que garantiam a tradução dos sons dos animais em vários idiomas. Comprei a tramoia de um ambulante sem acreditar muito, curioso que sempre fui nesse assunto, mas não roubei nada da natureza.

O cãozinho nada satisfeito com o que ouviu, insistia:

– Não arriscas nada, vives neste pequeno espaço como se fosse o mundo!

A tartaruga falava muito baixo…

– É verdade que exploras cada cantinho desse quintal muito mais do que eu, mas também não vai além dos muros, e, mesmo quando foges, não se afasta mais que uns poucos quarteirões. O mundo, cãozinho, o mundo mesmo, é muitas vezes maior que isso…

– É mesmo? E como sabes se nunca saiu deste quadrado de cimento? - perguntou insistente o cãozinho.

– Imagino - disse a tartaruga. Imagino… Nunca olhaste de onde vem a chuva? Ou para aquelas luzinhas que desaparecem quando nasce o dia?

– Não - falou o cãozinho. Não enxergo muito bem de longe, mas escuto e sinto os cheiros como ninguém!

– Eu sei, é assim que descobres quando o gato está por perto ou o humano está chegando, e sabes exatamente qual comida te preparam sem vê-la, não?

– Isso…

– Vês, sem enxergar, através das paredes. - balbuciou a tartaruga com um certo quê de ironia, e continuou:  

--- Mas, se não podes ver o céu, não tem surpresa. Eu, que não tenho pressa, que não escuto muito nem sinto os cheiros, e tenho a vista cansada, vejo as estrelas mutantes e minha vida é repleta de novidades…

Era visível a irritação do cãozinho com o discurso da tartaruga...

– Põe a cabeça pra fora, cascuda! Que novidades... se nada acontece nessa vidinha parada?

Com a cabeça sob o casco… a tartaruga se estica por dentro, e diz:

– Eu, meu cãozinho… Se nada der errado, vou assistir tua velhice e ver o “humano” te enterrar no quintal. E repito, se nada der errado, também vou ver o humano envelhecer e morrer, quando mudarei de casa e viverei com outros humanos, que provavelmente terão outros cãezinhos, que continuarão fazendo as mesmas perguntas e insinuações…

– Prevês o futuro? - rangendo os dentes, o quatro-patas.

– Claro que não, só me baseio no que vi, nos outros cãezinhos que se foram antes de ti.

Quando o diálogo estava esquentando, a porra do fone de ouvido parou de funcionar. Corri pra casa, peguei a bateria da máquina fotográfica, nada. Desmontei a tramoia… O que tinha dentro? Nada. Procurei no Google onde comprar outra. Nada. No outro dia perguntei aos lojistas se sabiam quando aquele ambulante aparecia por ali, ninguém nunca o vira. 

Contei a minha mulher o que acontecera, achou que além de ser otário tinha endoidecido e caiu na gargalhada, que só não foi mais dolorido porque meu cãozinho, enchendo o saco da tartaruga, latia mais alto.

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