Palhaço?
Estava superatrasado, acabara de engolir um almoço sem
graça, quando meu cão aparece na porta da cozinha com uma chave entre os
dentes.
--- Vem aqui, Tom, deixa eu ver isso!
Ele faz umas firulas, joga pra cima, pega de novo. Me
aproximo... ele se afasta.
--- Para com isso, Tom, vem aqui... vamos trocar por uma
bolacha!
Com a bolacha na mão ele fica na dúvida, se aproxima, quer
a bolacha, mas a chave ele não solta. Por fim, depois de uns segundos, decide
pela farinácea e deixa a chave cair. É a chave do meu carro, me abaixo pra
pegá-la, ele é mais rápido e a abocanha de um só golpe, ainda com parte da
bolacha na boca.
--- Olha aqui, Tom, vamos parar...tô atrasado e isso não
tem graça nenhuma!
Curvo os joelhos e o chamo carinhosamente... Ele vira
de bunda e me olha de soslaio da soleira da porta da cozinha. Ameaço correr,
ele sai da cozinha numa arrancada de atleta, mas pára a uns três metros.
--- Puta que pariu, Tom, você vai levar uma surra! - grito,
bravo, já sem paciência, quando toca o telefone.
--- Alô? Quem? Ah... sim, pois não. (É a moça da Vivo que
pergunta se o Speedy ficou bom).
--- Não sei, não, moça. Fiquei a manhã toda sem
conexão, mas agora não posso ver isso, estou atrasado e tenho que sair.
--- Como? Tô dizendo que não dá pra ligar o computador
agora, que estou em cima da hora para um compromisso e o Tom está me olhando
com a chave do carro na boca.
--- Por que deixo meu filho pôr a chave na boca? Se eu sei
que chave tem bactéria? Não, minha Senhora, o Tom não é meu filho, não tenho
filhos, e vai ser um inferno chegar atrasado, meu cliente não tolera isso. Eu sei, eu sei, moça, que é o seu trabalho, que precisa
saber se está funcionando, mas agora não
dá mesmo, então escreve aí que eu não pude ver isso, porque meu cão roubou a
chave do carro e está me olhando agora com aquela cara de idiota, só esperando
eu desligar o telefone pra correr atrás dele!
--- Já disse que não é meu filho, moça! É um cão, um filho
da puta que peguei na rua outro dia, quase morrendo, e que agora toma conta de
tudo...
--- Não, minha Senhora, não a estou ofendendo, estou
atrasado..! E ele não é um cão bravo, é um bem pequeno, parece o Garrincha,
pernas tortas, dribla, só quatro dedos em cada pata, e é da pá virada... Um
segundo, minha Sra.!
Largo o telefone e aproveito que ele está perto do fogão,
distraído. Corro e fecho a porta da cozinha.
--- Agora dá aqui essa chave, Tom!
Ele circula ao redor da mesa me fazendo de palhaço. Cerco
ele com as cadeiras, mas o monstrinho vai pra sala. Depois de uns minutos de
correria, ele entra no lavabo.
--- Agora se fodeu, né Tom?
Fecho a porta, lavabo minúsculo.. ele larga a chave
no chão e me olha com aquela cara de coitadinho. Devia dar uma surra no safado,
mas lembrei do telefone...
--- Alô, me desculpe, Senhora... Não, não fui ver se o
Speedy está funcionando... O que fiz nesse
tempão? Minha chave, a chave do carro... consegui pegá-la, lavabo é uma
armadilha! O quê? Não, claro que não, não estou pensando que a Senhora é palhaça.
Desligou na minha cara! Se tem algo que detesto é isso, só deus
sabe quanto. Pus no gancho, abri a porta da cozinha pro Tom sair... outra vez
toca a merda do telefone...
--- Olha aqui, minha Senhora, sou educado, mas não suporto
que desliguem o telefone na minha cara, então, mesmo não conhecendo sua mãe, vai
a puta que o pariu! Entendeu? Ahn...?! Quem? Sim, sou eu mesmo! Sei que
marquei com o Senhor, me desculpe, já estou saindo... Se eu sei que horas são? Sim,
é que me enrolei um pouco, primeiro o Tom roubou a chave do carro, depois foi a
moça do Speedy... O quê? Não, absolutamente... Claro que não penso que o
Senhor é um palhaço, é que...
Não era mesmo meu dia, outro telefonema desligado na minha
cara, duas vezes em dez minutos!
Respirei fundo, o sol invadia a cozinha, dia lindo...
o Tom na janela pelo lado de fora, com os lábios erguidos, jeito de sorrir, me
convidando pra passear...
Dia aziago desde que acordei...
--- Pera aí, Tom! Só me dá um minutinho pra pegar o alicate
e cortar o fio do telefone antes que me arrependa.
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