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23 de dez. de 2013

Frederica, e deus e o diabo na terra do sol.

"Que dia infernal, hoje deu tudo errado...". - disse a senhora de meia idade ao menino do seu lado.


"Isso aqui está um inferno". – falou o cobrador, com a gravata toda amarfalhada, a um passageiro que entalou na catraca.


Parecia mais um formigueiro aquele amontoado de gente, nenhuma ideia pode ser concatenada com tantos cheiros, ruídos, caras de "soutine", mas fiquei divagando sobre o porquê de se falar tanto no inferno num dia ruim ou muito quente, e quase nada sobre o céu num momento agradável ou de boa sorte.


Passou dos trinta graus logo se tem em mente uma coca-cola, cerveja bem gelada ou algo de Lúcifer. Estranho que as labaredas flamejantes são o antagônico modelo do cálido azul do paraíso, que ninguém cita nos dias bons.Do paraíso fresquinho das terras etéreas do Senhor, só vez por outra, depois de uma delícia qualquer, escuta-se que 'aquilo é dos deuses', ainda assim só uma referência aos deuses pagãos, e não passa disso. Agora, uma coisa é certa, quem fica bravo à toa, fala alto como os trovões, talha pedra com fogo, isso lá é coisa do divino; ao contrário, o capeta é mudo ou muito educado.


O ônibus freiou de uma vez e só não caiu todo mundo porque não se podia cair, lotado que estava. Na hora pensei na Frederica, a indiazinha que está hospedada em casa - ela não ia entender isso. A pequena veio à cidade por estar no programa de reciclagem cultural criado pela Fundação de Amparo ao Índio pra facilitar a ocupação das terras dos seus parentes.


Frederica...? Como puderam dar um nome desses a uma aborígene? Mas é o que menos importa, pra ela complicado são as aulas de catecismo, que não está compreendendo direito e me faz perguntas, que tampouco sei responder. Queria poder lhe explicar essa história do bem e do mal, mas confesso que não sei por onde começar... e minha cabeça estourando com o calor e aquelas falas sobre as más sortes, citando o inferno a cada instante...


Vozes se misturavam aos braços, coxas, cabelos... nem sei como fui lembrar que aprendi com as freiras do colégio, que ao inferno vão as crianças más e desobedientes, os inconformados, os ladrões, enquanto o céu recebe os que pautaram por uma existência comedida e sem sobressaltos, enfim, os que transbordam de amor. Assim me ensinou o catecismo nas suas primeiras lições, mas nem é preciso ser um estudioso do assunto pra perceber que essa espécie de guerra fria só não passa na TV porque todo curioso que se atreveu conhecer não voltou.


Dúvidas, quem não as tem? Se a ciência  já desvendou com o mapa genético os mistérios do corpo, da alma nada se sabe, muito menos onde se traça o destino dos recém-nascidos. Parece que ali tem uma mãozinha de Jeová e outra de Lúcifer, como se na calada da noite trabalhassem juntos, porque no corpinho do bebê vem grudada a etiqueta, que diz o quanto terá de alegria, de saúde, de doença, de tristeza... Por que o bom deus faria parte desse desastre? Cruz credo!


Não obstante, ao menos em pensamento, a maioria esmagadora dos humanos prefere gozar suas férias prolongadas e obrigatórias nos primaveris campos do éter a arder nas fictícias fogueiras das entranhas da terra. Mas fora as especulações metafísicas, nada se sabe de concreto sobre esses misteriosos czares, se há patrulhamento ideológico pelo grau de bondade ou maldade, nem quantas Chinas haveria nesses mundos, só há pura especulação.


Há quem pense que o ingresso ao céu pode ser adquirido matando em nome de deus. Se assim é, imagino um fim de tarde com as beatas de Santa Catarina tomando ar fresco numa animada conversa com os integrantes do Talibã. Argh... Seria deus psicótico, com múltipla personalidade? Como poderia receber de braços abertos um Pen Xin Xong, um Padre Pio, as crianças ortodoxas russas e seus algozes muçulmanos chechenos?


Sei não! Dizem que o inferno hospeda Galileu, Da Vinci, Giordano Bruno; mas se as tais fogueiras queimassem mesmo como as daqui, o inferno seria um 'não lugar' onde só haveria cinzas, e o diabo seria um joão-carvão qualquer, não um cidadão de primeira classe como é tratado nas Assembleias de Deus.


Depois, Dante fez menção a um inferno gelado...  isso é muito confuso. Às vezes penso que marqueteiro sempre existiu, não é privilégio de político, e aqueles da Galileia podem ter invertido a ordem das coisas, fazendo com que todo inconformado com o mal, fossem os maus, e povoaram o inferno com as crianças rebeldes, os pensadores, os ateus, os verdadeiros artistas; no céu hospedaram só os devotos. 


Lá estou eu blasfemando de novo! Droga, acho que o calor no ônibus está me fazendo delirar. 


Arre, desci! Sopra uma brisa suave na calçada, estou chegando em casa. Da esquina vejo Frederica na sua inocência, pulando feliz em frente ao meu portão.Melhor deixar esses pensamentos pra lá, quando ela crescer certamente saberá resolver isso melhor do que eu. Por hora, transborda de alegria e nem desconfia que está perdendo sua história com uma canetada de gabinete. Melhor assim, nem o relógio, nem a Terra vão mesmo girar ao contrário, e sem infâmias ela ainda seguirá criança por algum tempo.

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