Frederica, e deus e o diabo na terra do sol.
"Que dia infernal, hoje deu tudo errado...". - disse a
senhora de meia idade ao menino do seu lado.
"Isso aqui está um inferno". – falou o cobrador, com a
gravata toda amarfalhada, a um passageiro que entalou na catraca.
Parecia mais um formigueiro aquele amontoado de gente, nenhuma
ideia pode ser concatenada com tantos cheiros, ruídos, caras de
"soutine", mas fiquei divagando sobre o porquê de se falar tanto no
inferno num dia ruim ou muito quente, e quase nada sobre o céu num momento
agradável ou de boa sorte.
Passou dos trinta graus logo se tem em mente uma coca-cola,
cerveja bem gelada ou algo de Lúcifer. Estranho que as labaredas flamejantes
são o antagônico modelo do cálido azul do paraíso, que ninguém cita nos dias
bons.Do paraíso fresquinho das terras etéreas do Senhor, só vez por
outra, depois de uma delícia qualquer, escuta-se que 'aquilo é dos deuses', ainda
assim só uma referência aos deuses pagãos, e não passa disso. Agora, uma coisa
é certa, quem fica bravo à toa, fala alto como os trovões, talha pedra com
fogo, isso lá é coisa do divino; ao contrário, o capeta é mudo ou muito
educado.
O ônibus freiou de uma vez e só não caiu todo mundo porque não
se podia cair, lotado que estava. Na hora pensei na Frederica, a indiazinha que
está hospedada em casa - ela não ia entender isso. A pequena veio à cidade por
estar no programa de reciclagem cultural criado pela Fundação de Amparo ao
Índio pra facilitar a ocupação das terras dos seus parentes.
Frederica...? Como puderam dar um nome desses a uma aborígene? Mas
é o que menos importa, pra ela complicado são as aulas de catecismo, que não
está compreendendo direito e me faz perguntas, que tampouco sei responder. Queria
poder lhe explicar essa história do bem e do mal, mas confesso que não sei por
onde começar... e minha cabeça estourando com o calor e aquelas falas sobre
as más sortes, citando o inferno a cada instante...
Vozes se misturavam aos braços, coxas, cabelos... nem sei como
fui lembrar que aprendi com as freiras do colégio, que ao inferno vão as
crianças más e desobedientes, os inconformados, os ladrões, enquanto o céu
recebe os que pautaram por uma existência comedida e sem sobressaltos, enfim,
os que transbordam de amor. Assim me ensinou o catecismo nas suas primeiras
lições, mas nem é preciso ser um estudioso do assunto pra perceber que essa
espécie de guerra fria só não passa na TV porque todo curioso que se atreveu conhecer
não voltou.
Dúvidas, quem não as tem? Se a ciência já desvendou com o mapa genético os mistérios
do corpo, da alma nada se sabe, muito menos onde se traça o destino dos
recém-nascidos. Parece que ali tem uma mãozinha de Jeová e outra de Lúcifer, como
se na calada da noite trabalhassem juntos, porque no corpinho do bebê vem
grudada a etiqueta, que diz o quanto terá de alegria, de saúde, de doença, de
tristeza... Por que o bom deus faria parte desse desastre? Cruz credo!
Não obstante, ao menos em pensamento, a maioria esmagadora dos
humanos prefere gozar suas férias prolongadas e obrigatórias nos primaveris
campos do éter a arder nas fictícias fogueiras das entranhas da terra. Mas fora
as especulações metafísicas, nada se sabe de concreto sobre esses misteriosos
czares, se há patrulhamento ideológico pelo grau de bondade ou maldade, nem
quantas Chinas haveria nesses mundos, só há pura especulação.
Há quem pense que o ingresso ao céu pode ser adquirido matando em
nome de deus. Se assim é, imagino um fim de tarde com as beatas de Santa
Catarina tomando ar fresco numa animada conversa com os integrantes do Talibã. Argh... Seria deus psicótico, com múltipla personalidade? Como poderia
receber de braços abertos um Pen Xin Xong, um Padre Pio, as crianças ortodoxas
russas e seus algozes muçulmanos chechenos?
Sei não! Dizem que o inferno hospeda Galileu, Da Vinci, Giordano
Bruno; mas se as tais fogueiras queimassem mesmo como as daqui, o inferno seria
um 'não lugar' onde só haveria cinzas, e o diabo seria um joão-carvão qualquer,
não um cidadão de primeira classe como é tratado nas Assembleias de Deus.
Depois, Dante fez menção a um inferno gelado... isso é muito confuso. Às vezes penso que marqueteiro
sempre existiu, não é privilégio de político, e aqueles da Galileia podem ter
invertido a ordem das coisas, fazendo com que todo inconformado com o mal, fossem
os maus, e povoaram o inferno com as crianças rebeldes, os pensadores, os ateus,
os verdadeiros artistas; no céu hospedaram só os devotos.
Lá estou eu blasfemando de novo! Droga, acho que o calor
no ônibus está me fazendo delirar.
Arre, desci! Sopra uma brisa suave na calçada, estou chegando em
casa. Da esquina vejo Frederica na sua inocência, pulando feliz em frente ao
meu portão.Melhor
deixar esses pensamentos pra lá, quando ela crescer certamente saberá resolver
isso melhor do que eu. Por hora, transborda de alegria e nem desconfia que está
perdendo sua história com uma canetada de gabinete. Melhor assim, nem o
relógio, nem a Terra vão mesmo girar ao contrário, e sem infâmias ela ainda
seguirá criança por algum tempo.
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