O MENINO E AS PONTES
— Você não pode entrar! Cadê o Visto? – no balcão do posto aduaneiro, falou o militar boliviano ao Menino. --- Tem que retornar ao Peru, em Puno há um consulado da Bolívia…
— Ninguém me disse nada, Senhor, não estou entendendo…
— Eu estou dizendo! Sem o Visto ninguém entra na Bolívia! – disse o militar.
— Mas fui até a Guiana, Senhor … até agora ninguém me pediu esse tal Visto…
— Aqui na Bolívia é assim, só entra com o Visto!
Do lado oposto da ponte que liga os dois países, o funcionário da aduana peruana explica porque ele não pode entrar mais no Peru…
— Só entra aqui quem vem de lá (apontando com o dedo para a Bolívia). Não foi você que acabou de sair daqui agorinha mesmo? E não fui eu mesmo quem pôs o carimbo no seu passaporte?
— Sim, foi… – disse o Menino. — Mas eles disseram que tenho que ir ao consulado boliviano em Puno…
— Sinto, não é possível… você acabou de sair, agora só pode entrar novamente se tiver o carimbo de saída da Bolívia.
Do lado de lá da ponte, novamente na aduana boliviana.
— Não tem outra maneira, Senhor? Eles dizem que só posso ir a Puno se vocês carimbarem minha saída…
— Como vou escrever aqui que saiu se não entrou? Já disse e vou repetir, sem o Visto do cônsul da Bolívia em Puno, por aqui ninguém passa! - falou o militar.
O Menino observa que ele usa um velho par de tênis sem meias, uma farda desbotada, e escuta atentamente algum jogo de futebol num radinho de pilha …E sai dali olhando o desfiladeiro pela balaustrada da ponte, caminhando lentamente, como quem, sem pressa, sabe o que não vai encontrar. Olha para os seus pés machucados e limitados, e inveja as aves que cruzam a fronteira dispensando as pontes e a burocracia. Fecha os olhos, os semblantes dos policiais lhe surgem na retina; tapa os ouvidos, escuta-os dizendo “não”. Lembra então da avó, dos amigos, e chora.
Novamente na aduana peruana.
— Você de novo, Menino?
— Por favor, Senhor, já é quase noite, cheguei as dez da manhã e não consigo sair desta ponte, tenho que voltar pra casa. minha avó está doente e mora muito longe daqui.
Olhando nos olhos do Menino, o funcionário da aduana fala pausadamente…
— Enquanto eu estiver neste posto, não posso deixar você passar. Às vezes preciso ir ao banheiro, que fica ali fora (apontando para uma casinha esverdeada). Quantas pessoas você vê trabalhando aqui?
Minutos depois ele se afasta em direção a tal casinha.
Pelas palavras não ditas, o Menino encontrou o jeito de voltar ao Peru. Em Yonguyo, cidade da fronteira, não havia linhas de ônibus ou trens regulares, e a única forma do ir ou vir era em caronas pagas nos caminhões de transporte, ou pelo lago Titicaca de barco
Horas depois, por 30 soles adiantados, num pequeno caminhão que ia a Cusco, o Menino aguardou sentado na carroceria até que cholas, caixas, cabras e galinhas ocupassem totalmente o pequeno engradado de madeira do pequeno e velho caminhão, que passou por Puno quando amanhecia. O consulado boliviano abria às 11hs.
Às 11 hs em ponto.
— Bom dia, minha Senhora. Preciso falar com o cônsul.
— Hoje não é possível, ele está doente e não pode atender ninguém.
— Minha avó também está doente e preciso voltar pra casa, preciso desse Visto. Não dormi nem comi nada, passei a noite num caminhão… Por favor, Senhora…
— Vou tentar… Mas não prometo nada…
Minutos depois, o cônsul geral da Bolívia aparece de pijama na antessala, um ancião de cabeleira branca, barba por fazer, pálido como os mortos, tossindo, e aos berros, dizendo que ganhava uma merda e não tinha nem o direito de ficar doente.
— De quem é o passaporte? – praguejou o velho.
— Meu, é meu, Senhor. – disse o Menino.
Sem proferir mais nenhuma palavra, o velho pegou o documento e voltou tossindo para o fundo da casa.
Um tempo depois…
— Está aqui seu Visto, você tem sorte. – disse a Senhora. — O cônsul está muito nervoso, ontem ao telefone brigou com um general da Capital e parece que vão transferi-lo para algum lugar no fim do mundo.
Por outros 20 soles, o Menino conseguiu um barco de pesca que ia até a fronteira da Bolívia.Já era noite quando chegou. Caminhou até a ponte que separava os países, sentou sobre a mochila, e ficou observando o posto aduaneiro do Peru, lembrando as palavras mágicas que ouvira na noite anterior. Quando a luz da casinha externa à guarita acendeu, ele passou. Passou rápido na escuridão da lua nova mal enxergando onde pisava. Cansado e no breu nada lhe pareceu igual. Nem era tão verde a casinha, nem a ponte tão curta.
Enfim… novamente na aduana boliviana.
— Boa noite, Senhor, pode carimbar meu passaporte?
— É raro alguém vir a essa hora. – disse o militar. — Vamos ver… Sim, está correto, tem o Visto…
Mas quando olhou mais atentamente o passaporte…
— Ora, ora… temos um problema, aqui diz que você saiu anteontem de Yonguyo… Como chegou aqui, veio voando?
— Bem que gostaria, Senhor! Faz sim, dois dias, que saí de Yonguyo, mas quando ia entrar, seu companheiro, aquele que usa tênis e tem um radinho de pilha, disse que não podia sem o Visto. Voltei então até Puno, depois peguei um barco que vinha para a fronteira. Passei pelo posto peruano e aqui estou. Assim eu vim…
— Mas Yonguyo é do outro lado do Titicaca… Ali (apontando com o dedo para o fim da ponte) é Desaguadero, você tomou o barco errado. Vou ter que falar com a chancelaria em La Paz, não sei se posso deixar você entrar por aqui. Amanhã, no horário comercial, o meu substituto fará essa consulta. Se quiser pode dormir aí no banco. – disse burocraticamente o militar.
Às 9 hs da manhã, o militar que o substituiu, devidamente informado sobre o caso, ligou para a chancelaria em La Paz.
— Alô, alô? Aqui é do posto de fronteira P21. Tenho um problema e preciso falar com o coronel Luma. Ahn… não estou ouvindo direito, fale mais alto! Não, não… tem que ser mesmo o Luma! O quê? Como ele não está, são mais de nove horas! Ok… Então chama o coronel Chaves. Não estou escutando direito… É isso mesmo, ele não está também? Como…? Estão todos em casa assistindo pela TV a Raquel Welch no “Café com o presidente”? Ok, ok, ligo então depois do almoço.
Ouvindo a conversa, o Menino fala…
— Minha avó está doente, Senhor, ainda tenho mais de três mil quilômetros até a minha casa, e vai fazer três dias que não saio do mesmo lugar. Meu dinheiro está acabando, deixa eu passar, por favor, releva esse probleminha…
— Você não ouviu? Todos estão ocupados vendo a Rachel, mas até a tarde vamos resolver isso, faz aí o seu lanchinho e vamos aguardar. Tenho que falar com o coronel Luma ou com o coronel Chaves, com um ou com o outro, ninguém mais pode resolver isso.
— Desculpe-me, Senhor, não sei se entendi bem, mas por que a Rachel Welch está falando com o presidente?
— Ora, porque ela é boliviana… veio lançar um filme e nos visitar por ocasião do seu aniversário, e agora mesmo está conversando com o general Hugo Banzer, no seu programa matinal. Pena mesmo não ter uma TV aqui, hoje é quase feriado na Bolívia. – concluiu o militar..
À tarde…
O militar trocando de turno explica ao companheiro, que à noite foi informado sobre o que ocorria, e que já ligara à chancelaria. Diz ao companheiro que essa situação confusa só pode ser resolvida com a anuência da chancelaria da capital, mas tanto o coronel Luma como o Chaves não trabalharam no período da manhã porque estavam em casa assistindo o ”Café com o presidente”.
Depois de assinar um livro, o novo militar liga novamente à chancelaria.
— Alô? Chama aí o Luma… Quem? Ah… sim, desculpe, é o Senhor mesmo, boa tarde, coronel Luma! Desculpa, a ligação está bem ruim, quase não se escuta… Quem fala aqui é o o cabo Esteves do P21. O que se passa? Sim, explico, é que o cidadão não tinha o Visto e… Eu sei, coronel, eu sei, que sem Visto ninguém entra, mas agora ele já tem. Como? Desculpe… o quê? Qual é então o problema? Bem, coronel, é que ele saiu por Yonguyo faz três dias e… Sim, sim, entendi, então é só ele pagar a multa … claro, obrigado Senhor coronel, passe bem!
O policial acende um cigarro...
— Você é um rapaz de muita sorte, são só 140 pesos bolivianos para os selos da multa e a questão tá resolvida.
— Multa? Mas só tenho 300 pesos…
— Muito bom, bom mesmo, aqui você só paga 140 pesos e está liberado pra entrar… ou se preferir toma um barco, atravessa o Titicaca, e entra por lá...
Inconformado, o Menino paga a tal multa e começa sua longa viagem de volta dentro das boleias ou sobre as carrocerias dos caminhões, e tanto lhe vinham imagens da avó, como das crianças descalças das ilhas de palha do Titicaca, as areias do Atacama, lembrava dos amigos se lamentando da última derrota do Urano (seu time de várzea).
Quase congelou no alto da carga de arroz de um caminhão na Sibéria do Altiplano. Depois, no Trem da Morte, na selva boliviana, num calor insuportável, viu nuvens de borboletas inesquecíveis, e numa minúscula estação sem nome, por esconder sob as saias latas de leite em pó, viu cholas com crianças no colo sendo arrancadas e arrastadas do trem por soldadinhos de chumbo.
Toda volta é difícil e o Menino chegou tarde para ver a avó.
Mas foi naquele tempo, exatamente naquele tempo, naquelas pontes, quando lhe deram de presente o relógio sem marca, sem ponteiros e sem enfeites, que ele se perdeu da criança que o acompanhava.