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8 de jun. de 2014

Até breve... nunca mais.

Parou de falar com os cachorros do prédio, com as crianças, nem mais um simples olá ou bom-dia deu aos vizinhos, que ninguém entendeu. 

--- Teria  brigado com a mãe ou uma desilusão amorosa? - se perguntou um.

Poderia ter discutido e ficado aborrecido com a mãe, se tivesse mãe. Mulher também não tinha, e nenhum caso que se soubesse.

Aposentado, ainda fazia uns bicos consertando fechaduras e relógios de parede, sempre acompanhado pelo cão que nunca usou coleira. Mas quando mudou, mudou mesmo - parou de trabalhar, e pediu para desligar o telefone. 

--- Não tinha TV,  e agora também sem telefone... Será que ficou surdo?  - se questionou outro.

Podia ser, mas não parecia. O velho aparentava boa saúde, e seu cão também. Saíam muito cedo, só voltavam ao anoitecer.

--- Onde iam, como gastavam as horas? - curiosos, pensavam todos. 

O edifício era pequeno, antigo, e abrigava uns tantos desempregados, que falavam alto e viviam discutindo. Tudo era motivo pra encrenca - o filho do outro que deu um chute, o grito de gol do time adversário... Os que não gostavam de discussão eram mestres em intrigas. Aquilo era o exemplo saudável do inferno sem o demônio, e o velho solitário deve ter se enchido daquela gente, que pensava em tudo menos nisso.

-- Pode ter recebido uma notícia lá da sua terra, a morte de algum parente que gostava... - falou o síndico para o bando de briguentos.

Ele era o morador mais antigo, ninguém o viu chegando, nem sabiam se teve mulher, se era viúvo. O sotaque estranho não se identificava a origem, e ele nunca explicou a nenhum, mas quando lhe perguntavam dizia ter nascido ali mesmo. Podia ser, mas não parecia ser.

Numa manhã saiu com seu cão, como de costume, mas não voltou. Nem no outro dia também.

--- Eu sabia! Alguma coisa errada tinha... - comentou seu vizinho do lado.

Um outro alguém também comentou que podia ser um foragido da Justiça.

---  Ele é velho, pode ter morrido na rua, isso acontece! -  disse a vizinha do térreo.

Uma semana depois...

--- E se voltou de madrugada e ninguém viu? Pode estar morto aí no apartamento...  - sugeriu o morador novo, que mal o conhecia.

Quando o policial arrombou a porta do apartamento, entraram todos - o apartamento estava absolutamente vazio e limpo, janelas fechadas, nenhuma cadeira, tapete ou copo. Ninguém viu mudança alguma, nem o velho saindo com alguma tralha além do cão.

--- Ninguém vai embora assim sem um até breve... -  todos querendo respostas.

--- Esse é um país livre, cada um vai quando e pra onde quiser... --- falou o delegado, irritado com aquela gente.

Parentes ele não tinha, e se ninguém da família faz um Boletim de Ocorrência do desaparecimento, a polícia não toma conhecimento.

--- E agora, como vai ficar o apartamento dele? .. Ou não é dele? - perguntou ao síndico, a Sra. do último andar..

--- É dele sim. -  disse o síndico, que ainda não sabia que naqueles dias o velho vendera, e que saiu do banco com uma mala de dinheiro, indo sabe-se lá pra onde com seu cão que nunca usou coleira.

Sobre seu paradeiro ninguém nunca soube, mas tampouco esqueceram a despedida que não teve, aquilo incomodava.

E mesmo muito tempo depois, com os mesmos genes encrenqueiros dos pais, os filhos crescidos continuavam inconformados com o velho que sem um até breve sumiu como veio, sem ninguém ver.

Se alguém achar que a história é chata, que não tem um final, eu respondo sem nenhuma aflição: tem sim, o inferno existe sem o demônio e é aqui mesmo, mas nem todo mundo se sente atraído.     

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