Páginas

Translate

7 de jan. de 2015

BI-NONO

Joseph, meu bisavô, quebrou a cara do desonesto prefeito da sua cidadezinha no sul da Itália - e, metaforicamente, também a sua, já que teve que deixar pra sempre o lugar que nasceu.Não era agricultor, nem imigrante.


Em Gênova, pagou as passagens da família e embarcou com filhos e máquinas para a Terra Nova.No Porto de Santos, vendo estivadores comendo arroz e feijão, e cobrindo o prato com farinha de mandioca, que à distância pensou ser queijo ralado, disse aos filhos "oh, vejam...  este sim é o país da fartura...


"Depois de acomodar a família, alugou um espaço na Rua da Glória, ao lado da Sé, em S.Paulo, e montou a primeira marcenaria movida a vapor da cidade, que na época não tinha mais que quatrocentos mil habitantes. Mas não demorou muito pra perceber seu engano - a Terra Nova não era o país da fartura, nem dos sonhos.


Sobreviveu, claro, era habilidoso; e também, claro, se meteu em muitas confusões até seus mais de noventa anos. Alma anárquica era incapaz de lidar de outra forma com ladrões, em especial com os de gravata, que não fosse usando as próprias mãos.


Num segundo me veio sua imagem quando, impossibilitado de resolver meu problema, quebrei o celular na loja da VIVO pra não me arrepender mais tarde de encerrar a dependência do aparelhinho e da megacorporação desonesta. Mas exceto os olhos atentos da funcionária, ninguém mais se importou, acostumados que estão com a leitura virtual que fazem de quase tudo. 

Fosse meu bisavô teria destruído a loja inteira, e penso -  sorte dele que é pó, os tempos mudaram, farsante e ladrão de gravata é o que não falta, aliás, abunda.


Cabeça-dura, ele bateu em muita ponta de faca e se meteu em grandes encrencas a vida inteira, histórias e histórias, mas ao menos uma é digna de nota, dado o inusitado - ele tinha oitenta e dois anos.


Toda segunda, num boteco da rua Piauí, Joseph fazia sua fezinha no "bicho", mas nunca acertara nada, até que num fim de tarde, voltando do cemitério da Consolação, foi parado por um conhecido molusco das imediações, que lhe perguntou os números que tinha jogado.


O velho pôs os óculos, pegou o papelzinho no bolso... O tal molusco ou verme tirou do paletó outro papelzinho pra comparar com o dele, e com cara de espanto, falou: - Meu Deus! Veja você mesmo, deu tudo na cabeça, velho, desta vez vai ficar rico! Meu bisavô olhou os números, apertou mais a vista, era o improvável acontecendo. 


Chegou em casa tremendo: -  Rosário, Rosário! Acertei no bicho! Deu o milhar, a centena, a dezena, acertei todos os números... (Rosário era meu avô, seu filho mais velho) - O que eu faço agora?


- Vai lá amanhã - disse meu avô - Vai logo depois do almoço, que é a hora que eles fazem os acertos...


O velho nem dormiu aquela noite.


Mas o dia seguinte não era um bom dia pra ninguém. O molusco copiara os números que ele havia jogado pra lhe fazer uma troça. O dono do boteco, que nada sabia, mostrou-lhe a lista dos números sorteados - e o velho, como sempre, manteve a escrita de não acertar nada, mas desta vez achou que estava sendo enganado, e quis receber de qualquer jeito.


Muita sorte do molusco de não estar ali na hora. Não teve muita conversa, ele logo começou quebrar tudo, e não sobrou nada em pé, nem gente, nem coisa. Com mais de oitenta anos só dois carros da polícia com meia dúzia de fardados pra segurá-lo e levá-lo em cana.


Se vivesse hoje, certamente ia se dar bem nessas lutas do MMA, se gostasse de brigar, mas ele não gostava, só era um macaco grande de olhos azuis e mãos gigantes, que nunca soube lidar com certas coisas humanas.


Saiu na mesma noite da delegacia quando se acalmou, depois de ouvirem as explicações do filho. Naquela segunda o "paratodos" funcionou ao contrário, e seu prêmio foi pagar tudo o que quebrou.


Ainda circulou por aquelas ruas por mais de uma dezena de anos, mas no bicho nunca mais jogou, nem no botequim entrou.


O verme ou molusco ou micróbio ou sei lá mais o quê, como meu avô se referia ao tipo, deve ter se assustado com o desfecho porque desapareceu pra sempre das redondezas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário