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8 de set. de 2014

Twenty years before

A mulher apareceu no portão de olho roxo, cara toda inchada.
Se hoje você não sabe, amanhã o tempo lhe conta, ninguém engana o tempo.
Me deu vontade de perguntar se queria ou precisava de alguma coisa, mas achei por bem ficar calado, que essas coisas nunca terminam bem quando a gente se mete.
Nem nos conhecemos tão bem assim, que dirá sobre vizinhos, que nem sabemos o que pensam e fazem. Vizinhos são sempre os outros. Aqueles não tinham filhos, nem animais, e brigas nunca se viu ou ouviu. Ela era quieta, sempre distante, e mal saía de casa. O marido, mecânico, vivia sujo de graxa e não era de conversar.
Casinha simples igual a quase todas da rua, exceto pelo estranho hábito de ter uma garrafa pet cheia de água sobre o medidor de eletricidade – que às vezes estava lá, às vezes não. Mas que logo virou endêmica - a maioria passou a fazer o mesmo. Não eram flores, nem mesmo algo gracioso, não tinha como não perguntar, e fui direto à quitandinha do Seu Mateus, que sabia da vida de todo mundo.
Seu Mateus... cadê o Seu Mateus? Porta fechada, eu ali olhando... Prontamente o filho do vizinho me respondeu o que não perguntei. "Faz duas semanas que ele fechou a quitanda e mudou pro sertão".
Ficamos momentaneamente sem a quitanda, a farmácia, o empório, a casa de ração, e o boteco, que lá tinha um pouco de tudo. Com o tempo essas coisas foram voltando, menos o Sr. Mateus que sumiu com a família e ali nunca mais pôs o pé.
As pets continuaram, diziam que a energia do sol acumulada na água interferia no relógio medidor de eletricidade, fazendo com que consumissem menos watts. Era o que diziam, afirmação tão verdadeira quanto as estapafúrdias invencionices das mãe puritanas, que diziam às filhas que se encostassem os seios quando dançassem elas iam se ver no teste do lápis.
Lembrei desse tempo quando li no jornal sobre a invenção ecológica de um mecânico, que furou as telhas e encaixou pets com água, cuja reflexão deu uma boa iluminação na sua oficina sem janelas, e foi copiado em várias partes do mundo.
Na mesma semana, numa festinha de crianças, reencontrei um antigo morador daquele lugar, o professor de matemática da escolinha de lata, e lhe contei sobre a tal invenção. E, claro, lembramos daquelas pets empesteando as fachadas, quando ele riu e me perguntou se eu sabia o porquê daquilo.
--- Sim, acreditavam que economizavam energia... – disse.
Ele caiu na gargalhada. --- Lembra do Seu Silvio e da Dna. Ana?
--- Quem?
--- O mecânico que surrou a mulher..E o quitandeiro Mateus, lembra desse? 
--- Ah sim, dele lembro bem, foi pro sertão, não é?
--- O Seu Silvio jurou ele de morte, pegava a Dna Ana quase todo dia.
--- Nem imaginava... – disse. Mas o que isso tem a ver com aquelas pets?
---  A Dna. Ana punha a pet no medidor pra avisar que o marido já tinha saído, e o Seu Mateus entrava na casa pelos fundos, que ninguém o via. Um dia o Seu Silvio voltou pra pegar alguma coisa.
--- E flagrou os dois, claro!  
--- Ele era forte, mas o Seu Mateus conseguiu fugir pelo muro, e no dia seguinte fechou a quitanda. A mulher levou uma surra, e pra humilhá-la o mecânico obrigou-a carregar aquela cruz, seguindo o procedimento de pôr a pet com água na caixa de luz. Quando começaram a lhe perguntar o que era aquilo, inventou essa coisa de economizar energia, que os incautos acreditaram e talvez acreditem até hoje. 

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