Não se encontra na razão toda a explicação do desejo, mas agregado à alma a poeira das estradas, como as estrelas, transformam a maneira de ver o outro.
Era um fim de outono, dez da noite, último dia do ano, a Ruta 3 deserta.
O sol enorme e vermelho do poente não permitia focar à distância uma mancha
escura, que podia ser uma ave ou um cão.
Depois de uma hora de caminhada - nem era um cão, nem uma ave, mas
a traseira de um automóvel preto parado no meio da pista. E aquele não era um
solitário carro quebrado, só o último de uma fila de exatos vinte e seis, e todos
vazios.
Naquele momento um estranho sibilo metálico se misturava às
rajadas de vento, mas no entorno não havia nada, quando toca a campainha de um
celular sobre o painel de um dos carros. Hesitei em atender, mas aquilo
insistia tanto que acabei pondo o sujeito no ouvido. E alguém ouviu o meu “alô”
com um suspiro, e foi só e tudo o que me foi permitido, não entendi nenhuma
palavra até o aparelhinho se calar por conta própria.
O céu escureceu de vez. E se a noite nunca atrasa, aquela veio na
hora e com chuva torrencial. Não ia mesmo chegar a lugar algum com tanta água,
que me acomodei no banco traseiro daquele carro.
Com o barulho dos trovões o estranho ruído desapareceu. Ou, se, exaurido,
embarquei rápido para algum lugar num outro mundo, que não percebi nada até abrir
os olhos na primeira manhã do ano seguinte.
O céu era todo anil, o sibilo voltou mais forte, e não havia
mais nenhum carro além do que eu estava. Pensei em anotar a placa, que chegando
ao vilarejo talvez alguém de lá pudesse me explicar o que acontecia, mas o carro
não tinha placa. E se no meu mapa dizia que faltavam só alguns quilômetros,
certeza que andei muito mais, e o tal ruído só se calou quando cheguei ao único
posto de combustível da região, na entrada da pequena comunidade conhecida como
Esperanza, que não tinha mais do que trinta habitantes.
Mas não havia ninguém no posto, nem na hospedaria.
A estalagem tinha as portas escancaradas. Bati palmas, assobiei,
cansei de chamar por alguém. Esperanza fora abandonada. Sobre o balcão do refeitório,
uma cesta com pão amanhecido e um café frio numa garrafa térmica. Peguei emprestado
um pão e sentei junto a uma mesa próximo à janela.
Estendi meu mapa, a próxima vila era muito distante e voltar
também não era pouco. Absorto, olhando a ventania de areia pela vidraça, como
uma pipa sem rumo num vento louco um menino ziguezagueava com a mão nos olhos. Larguei
tudo na mesa e corri em sua direção. Ele agarrou minhas pernas chorando muito.
Abracei-o e entrei com ele na estalagem.
--- Como se chama? – perguntei.
--- Juan – disse, soluçando.
--- Que foi, Juan, que está acontecendo aqui? – passando a mão
nos seus cabelos tentando acalmá-lo.
--- Eu moro com minha avó, foi ontem de manhã. Ela viu da janela
uns caminhões grandes e uns homens de uniforme, mandou eu ficar quieto, que ia
ver o que era aquilo, e não voltou.
--- E seus pais?
--- Não tenho pai, sou cego, minha mãe mora em outra cidade. Ontem,
enquanto esperava pela minha avó, ouvi gente gritando e chorando, o barulho alto
dos motores dos caminhões, fiquei com medo e me escondi, quando entraram em
casa não me acharam.
Juan tinha a pele clara, cabelos quase brancos, olhos azuis como
de uma pintura, e talvez uns dez anos, e assim que se acalmou, me perguntou onde
estava sua avó e quem eu era.
Não pude lhe responder com a precisão que certamente desejava,
mas disse se quisesse encontrar sua avó teria que vir comigo e andar uns três
dias (na hora decidi voltar), e perguntei se tinha alguma comida na sua casa.
Quase não tinha nada, peguei algumas poucas coisas, um cobertor,
uma garrafa de água, e saímos rápido dali, mas me perguntei como alguém podia
morar naquele casebre sem calefação, quando no inverno Esperanza tem
temperaturas abaixo dos trinta graus? Em Três Cerros é a única referência humana
em centenas de quilômetros, com sua hospedaria aquecida e o posto de
combustível.
Apesar de não enxergar Juan tinha algum sentido que desconheço.
Me acompanhava sem tropeçar, não reclamava nem fazia perguntas. As que eu lhe fiz
não sabia responder, mas lembrou que há algum tempo, desde que surgiu no campo
aquele estranho ruído metálico, não se podia mais beber a água que vinha do
rio, e que sua avó tinha uma vaca e umas galinhas, que foram ficando magrinhas
e acabaram morrendo.
Fiquei pensando no que disse. E se enquanto tinha sol, apesar do
vento, ainda fazia algum calor, à noite a temperatura caía a uns três ou quatro
graus, O dia se fora, e antes do breu total me afastei da pista, cortei uma
touceira de capim e fiz ele deitar e se enrolar no cobertor. Dormiu na hora.
Rezei para não chover, só tínha um abrigo de chuva.
Dia seguinte, outra vez sem cruzar com uma única alma, andamos
umas dez horas até desaparecer da vista a imagem dos Três Cerros (o acidente
geográfico que consta dos mapas ingleses desde o Sec. XVI). Descansamos e
comemos um pouco antes de seguir. Se aguentássemos a jornada dormiríamos mais
uma noite e chegaríamos a Jaramillo no fim do outro dia.
Anos atrás estivera naquelas paragens, mas desta vez, apesar da
sempiterna devastadora solidão do deserto, havia alguma coisa muito errada com
aquele lugar, nada ali se movia além do vento.
Acordamos cedo na manhã seguinte e andamos novamente o dia todo,
eu estava exausto. Apesar da aparência frágil, ele era selvagem, acostumado a
coisas inverossímeis, e não demonstrava cansaço, nem aborrecimento, quando no
começo da noite, enfim, chegamos a Jaramillo.
Uma semana sem ver ninguém, a primeira coisa que fiz foi entrar com
ele numa lanchonete. Juan parecia feliz em ouvir a voz de pessoas, e enquanto
comia me perguntou sobre sua avó. O que podia fazer se não levá-lo a uma
delegacia de polícia e relatar tudo o que vi e senti?
--- Esperanza? Esse lugar não existe, nunca existiu! De onde
você é? – me perguntou o policial.
Tentei argumentar que conhecia aquele lugar, que já estivera lá
num inverno. Ele me disse que estava sonhando, que era melhor pra mim esquecer
tudo aquilo e ir embora, que eles já tinham problemas demais na região.
Quando se assegurou que Juan era cego mesmo, disse que o levaria
para sua casa aquela noite, que no dia seguinte o encaminharia para uma tal
Fundação do Menor, e que iam procurar o paradeiro da sua avó.
Naquela mesma noite consegui uma carona de um funcionário da
estatal petrolífera, mas tudo que lhe perguntei ficou no ar, ele não falava
nada sobre o assunto. De madrugada cheguei a Rawson, daí o reencontro com a
civilização.
Foi a última vez que estive por lá, mas não estava sonhando,
aqueles automóveis sumiram enquanto dormia. E como esquecer daquele menino? Tampouco
soube o que fizeram com aquelas pessoas.
Pela descrição de Juan - água contaminada, os animais da avó que
definharam, a gritaria, homens de uniforme e o barulho dos caminhões, tenho a
impressão que foi o exército que retirou às pressas os moradores de Esperanza e
isolou aquela área.
Não há verdade que não se duvide, mas exatamente naquelas
coordenadas (latitude 48º 07´- longitude 67º 38´), concentra-se o maior buraco
de ozônio do planeta.
Muito bom.
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