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4 de set. de 2016

OUTROS DIAS, OUTRAS PESSOAS, OUTROS SORRISOS...

Outros dias, outras pessoas, outros sorrisos...

Acabei de pegar o Renatinho na escola, tá com dor de dente.
-- Abre a boca, filho, mostra onde dói. -- Não.
Sou a mãe dele, tô exausta, meu chefe é um chato de galocha, pensa que sou sua escrava , e acho que sou mesmo.
-- Abre a boca, filho, mostra onde dói! 
Ele chora, berra de boca fechada, pode? Pode. Minha vontade é de chamá-lo de filho da puta, mas não sou de dizer essas coisas e sou sua a mãe.
Ligo pro Renato, o pai dele, meu marido há nem sei quanto tempo. Ocupado, claro, sempre ocupado, não tem tempo pra nada. A secretária pede pra ligar mais tarde. Digo que é urgente, ela volta e diz que ele me retorna em seguida.
O carro anda e para, mas ele não, nem o barulho da rua disfarça, é uma berração em uma nota só.
Meu deus, vou pra casa ou levo ele ao dentista sem consultar o Renato? Liga, Renato, liga, não tô mais aguentando isso. Mas ele não liga. Não sou mesmo de falar palavrão, mas quero que o mundo se foda, não tenho dez reais na carteira e é aqui mesmo que vou entrar.
Lugar meio sujo, nunca entrei num Posto de Saúde da Prefeitura, nunca precisei. A Maria, minha diarista, diz que tem dentista, tá certo que ela tá na fila há meses para arrumar uma ponte, mas o Renatinho não precisa de dentadura, só de uma dura ou um remédio qualquer.
Ai meu pai do céu, por que mereço isso? Ele puxou tudo do pai, não só o nome, mordeu o dedo do doutor igual a um cão raivoso, e ainda tive de ouvir um sermão daqueles.
Depois que enfiei ele no carro, abriu a boca gritando mais ainda. Cadê o Renato, que nunca está onde e quando preciso dele. Manhê, socorro, não dei nenhum trabalho quando era criança, sua imbecil inútil, por que morreu tão cedo? Que adianta, agora nada adianta, tô morta, a cada minuto parece que minha casa se afasta mais com esse trânsito. Quando chegar vou dar um doril pra ele, vamos ver se passa.
-- Filho, diz pra mamãe quando começou essa dor, fala comigo por favor. Buá....e buá.... 
-- Alô? Renato? Arre. O que foi? Seu filho, que não para de chorar. Tá, nosso filho, desculpe. Onde estou? Na rua, no trânsito, com ele berrando de dor de dente, não tá escutando? Como..? Eu sei que ele tem os dentes perfeitos, iguais aos seus, mas tá berrando, com a mão na boca, até parei no Posto de Saúde, mas quem disse que ele abre a boca. -- Claro que o doutor tentou, mas sabe o que ele fez? Quase arrancou o dedo do sujeito, que ainda me deu uma dura daquelas, que não sei criar meu filho, quer dizer nosso filho. – Está rindo? Pera aí, me escuta, tô chegando em casa, pensei em dar um doril pra ele, que acha? Não?  Então o quê? 
Merda, acabou a bateria do celular.
-- Filho, para de chorar, por favor, vai passar logo, mamãe vai te dar um remédio assim que a gente entrar em casa.
Mas assim que abrimos a porta ele parou de chorar. – Ai, num acredito, tava ficando louca. Passou, filhinho? Ele balança a cabeça, que sim. – Diz agora pra mamãe onde doía? Ele levanta a gengiva e mostra um corte. -- Que foi isso? -- Foi o Alfredo, sabe? -- Não, não sei. -- Foi ele, o Alfredo, ele me acertou um soco bem aqui. -- Por que, filho, que você fez? --  Ele me xingou e eu dei uma mordida nele, quando soltei ele me deu um murro. – Mas você mordeu ele...? – Mordi.
– Não acredito, virou índio, é? Quando seu pai chegar nós vamos ter uma conversinha, agora vai fazer suas coisas, que já são sete e meia, não tenho tempo pra nada, tô morta e tenho que fazer o jantar pro seu pai, e eu nem posso pensar em comida.
-- E toma isso, filho, bochecha três vezes. -- Se arde? Arde, arde muito, acho que você vai morrer... 
Só ouvi ele no banheiro bochechando umas dez vezes. Eu sei que mereço. Sou uma idiota incompetente, quase derrubei a frigideira com óleo fervendo só de sentir o Renato entrando e perguntando cadê o filhinho dodói.
– Tá no quarto, era um corte na gengiva, ele mordeu um tal de Alfredo e levou um murro na boca.
– Eu sabia.
– Sabia o quê?
– Que não era dente cariado, nunca tive uma cárie, igual meu pai e meu avô. E o jantar, está pronto?
-- Como pronto, quantas mulheres você tem, não acabei de chegar?
– É que, acho que esqueceu né, hoje é quinta, tenho o joguinho de futebol lá no clube, mas tudo bem, vou ver o Renatinho e me trocar rápido. No caminho me viro e como um sanduba.
-- Filhooooo, filhoooo...

Quando li dia desses o que uma poeta escreveu, que ainda bem que existem outros dias, outras pessoas, outros sorrisos, juro que se ela fosse viva ligaria pra ela e perguntaria o porquê desse ainda bem. 

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