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26 de jul. de 2017

Uma tal Ulla

Uma tal Ulla.
Há sempre quem leve comida e água para essa gente das catacumbas. Por dó, piedade, para apaziguar um sentimento de culpa, ou mesmo sem saber o motivo... não muito diferente dos que alimentam cães de rua.
Fora dos padrões da normalidade, quem decidiu viver lá certamente teve seus motivos, mas nem todos foram miseráveis: há artistas que tiveram momentos de glória, bancários, intelectuais, e só não são completamente invisíveis ao Estado porque morrem e tem que ser retirados dali.O caso de Ulla chamou a atenção, quando uma notícia da TV mostrou que um ucraniano, que viveu na França, deixou sua fortuna para a tia de destino ignorado, Ulla Spassy, única irmã do seu pai, caso respondesse com uma só palavra a determinada pergunta do testamento.
Um jornalista da Corriere della Sera conhecia alguns moradores das catacumbas, e lembrava de ter ouvido falar de uma tal Ulla, não foi difícil encontrá-la. Mas não conseguiu saber seu sobrenome, se era ucraniana, nem como chegou ali. Atenta, de fala precisa, e manejando com sabedoria o idioma italiano, recusou- se falar do passado e ser fotografada.
O que seus vizinhos de toca lhe contaram é que era mesmo ucraniana, que perdeu o filho e a mãe, e foi trazida de Kiev por um grupo de sobreviventes de Chernobill. Também disseram que foi do serviço secreto da Ucrânia, mas nada ali é muito confiável - delirantes, a maioria sofre de alguma demência. No escuro e convivendo há anos com ratos e seu primos voadores dificilmente seria diferente.
O jornalista voltou lá várias vezes, cada vez mais impressionado com a idosa, que devorava jornais que chegavam até ela, e falava com muito conhecimento sobre a política italiana e as relações internacionais. Apesar da sempre quase escuridão onde estavam, e dos seus setenta e poucos anos, em nenhum momento lhe pareceu que ela tivesse alguma confusão mental, muito menos a aparência de quem sofreu os efeitos da radioatividade.
Mas quando citou o testamento e pronunciou o sobrenome Spassy, de atenta e interessante que era, aquietou-se desinteressada, logo falando de outras coisas. Nesse momento algo lhe assoprou que devia ser mesmo Ulla Spassy, a bilionária paupérrima.
E foi a última vez que se viram, ela se aprofundou nas grutas e não mais a encontrou.
Tempos depois, no final de um artigo sobre a máfia do lixo químico, o jornalista escreve umas poucas palavras completamente desalinhadas do texto, que certamente nenhum leitor atento entendeu ...
“Se existe a palavra precisa e ordenada, existe vida sã ao lado dos ratos nos subterrâneos fedorentos das catacumbas romanas. Mas que estranha energia povoa a solidão, que faz ser possível preferir o isolamento e a escuridão? Que espécie de feitiçaria se apodera de alguém, que se mantém atento ao mundo, completamente fora do mundo?”


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